terça-feira, 24 de outubro de 2017

Planetary



Warren Ellis, John Cassaday (2017). Planetary Book One. Nova Iorque: DC Comics.

Os comics enquanto género de banda desenhada têm uma forte vertente de auto-referênciação, com citações constantes das suas personagens icónicas e acenos aos fãs com pormenores das linhas narrativas que remetem para outras histórias. No seu mais banal, isso nota-se nos obrigatórios crossovers de verão, os mega-eventos com que as editoras major de comics tentam convencer os fãs a comprar o máximo número de títulos para saber todos os pormenores de uma história que se espraia entre revistas e personagens. No seu melhor, temos livros ou arcos narrativos de séries que contando a sua história, entretecem uma teia sólida que vai buscar elementos e iconografia da continuidade histórica do género.

Algo que Alan Moore tornou visível com The League of Extraordinary Gentleman, pilhando de forma enciclopédia a literatura fantástica dos séculos XIX e XX, entre o policial, romance de aventuras, terror e ficção científica. Vertente que Jeff Lemire explora contemporaneamente em Black Hammer, de forma mais limitativa porque constrangido ao género super-heróis. É, também, um filão muito explorado hoje no cinema e séries televisivas, capitalizando nos mercados de nostalgia para nos oferecer histórias que fundamentalmente não trazem nada de novo, mas encantam audiências pelas constantes referências narrativas e iconográficas a outros filmes, séries televisivas, livros, jogos de computador e outros detritos da cultura popular passada dourados pela memória.

Em Planetary, Warren Ellis segue as passadas de Moore com a sua League, embora invertendo as premissas. Não seguimos heróis do passado nas suas aventuras, acompanhamos agentes-sombra de uma organização secreta e de recursos ilimitados que investiga acontecimentos estranhos. O mandato da organização é investigar a história secreta do mundo, funcionando como auto-proclamados arqueólogos do impossível. Essencialmente, uma boa desculpa para Ellis fazer divertidos pastiches, indo buscar personagens e elementos narrativos a boa parte da cultura popular. Leva-nos a uma ilha japonesa cheia dos cadáveres gargantuescos de kaijus, distorce as histórias de origem de super-heróis icónicos transformando-os ou em vilões com vontade de dominar o mundo, ou em vítimas capturadas e aniquiladas para vivissecação, recupera os antigos heróis pulp para um passado em que computadores analógicos mostraram a estrutura do multiverso, brinca com teorias da conspiração, exploração espacial secreta ou jogos de espionagem.

Ellis não é especialmente discreto com os seus personagens, embora não os referencie diretamente. Temos um homem de bronze que não se chama Doc Savage, ou um milionário justiceiro que se oculta por detrás de um chapéu, capa e máscara que não é The Shadow. Os quatro astronautas secretos que ganham poderes e se tornam mais do que humanos numa missão translunar não são denominados Quarteto Fantástico, a criança enviada num foguetão vindo de um planeta que explode, o polícia galáctico com a sua lanterna e a guerreira vinda de uma ilha grega que se manteve secreta não são chamados de Super-Homem, Green Lantern e Wonder Woman. O super-espião que está envolvido nos segredos conspiratórios globais tem traços de Nick Fury e James Bond. Na ilha isolada onde apodrecem carcaças de monstros gigantes não há godzillas e mohtras, apesar dos vestígios putrefactos de lagartos radioactivos gigantes. Até John Constantine faz uma aparição, no seu próprio funeral com a cerimónia cheia de caricaturas dos heróis do comic de terror Swamp Thing dos anos 80. Mas estas não são referências directas, Ellis distorce estes elementos iconográficos para tecer a sua história, onde uma tríade de operacionais especiais se esforça por revelar, camada a camada, as histórias secretas do mundo.

Não por acaso, Planetary é um dos melhores trabalhos de Ellis. Os seus temas habituais de futurismo descarrilado e personalidades psicóticas que modelam o mundo à sua imagem são aqui complementados pela enorme vénia à literatura pulp, filmes de série B e comics. Também não por acaso esta série surgiu no final do século XX, uma forma de digerir o vasto legado ficcional do velho século em preparação para as possibilidades do novo século.