terça-feira, 12 de setembro de 2017

MOTELx 2017


O festival MOTELx tornou-se um ritual de fim de verão, no meu caso de arranque de ano letivo. Nada como preparar o espírito para o frio cinzendo das invernias que se avizinham com doses concentradas de cinema de terror. E nada como monstros, assombrações e baldes de tripas e sangue para me preparar para os horrores arcanos da convivência diária com professores e alunos no sistema educativo. O festival continua abrangente e eclético, talvez um bocadinho demasiado nos holofotes da moda comercial, algo inevitável e necessário à sua sobrevivência. Temos no programa um pouco de tudo, desde obscuros filmes portugueses (este ano não vi nenhum, infelizmente) aos filmes com pretensão a blockbuster (e promoção intensiva a condizer). Continua com os seus programas paralelos, com atividades para lá da cinefilia, ciclo na relutante Cinemateca, animação no espaço do cinema S. Jorge. E os gelados, claro, este ano sem os adereços de terror da IScream, mas com a deliciosa mestria dos gelados artesanais, feitos com as metodologias italianas, da Giallo. Confesso que terminei os dias do MOTELx um pouco mais anafado. E não sou caso único.



À Meia Noite Levarei A Sua Alma (José Mojica Marins, 1967)

Ainda em modo warmup, o primeiro filme da leva MOTELx deste ano. Como parte da programação, a Cinemateca organizou um mini-ciclo de cinema de terror sul-americano. Com alguma relutância, suspeito, depois de ouvir o comentário pouco convincente do responsável da Cinemateca no início da sessão. Foi uma boa oportunidade para rever este clássico do cinema de terror, o primeiro do lendário ciclo Zé do Caixão de José Mojica Marins, cineasta que, de acordo com António Monteiro, organizador do festival, se confunde com as suas personagens. Aqui encarna-a com veia, mostrando o porquê de ser um seu alter ego. É um filme deliciosamente incongruente, que transporta a iconografia do horror gótico para um cenário de tropicalismo empobrecido. Memorável pelo carácter obsessivo, cenas over the top conseguidas com efeitos mínimos e rústicos.



Super Dark Times (Kevin Phillips, 2017)

O filme de abertura do Motelx deste ano posicionou-se como um clássico instantâneo, uma espécie de novo Donnie Darko. Leva-nos à clássica small town americana no início dos anos noventa, focado num grupo de adolescentes que, após a morte acidental de um dos seus elementos mergulha numa espiral de paranóia, com um dos personagens a tornar-se serial killer. O filme é suportado pelo excelente trabalho dos actores, que conseguem criar uma enorme empatia com o espectador, e a sua estética cinzentista e revivalista. De resto, falha, arrastando-se numa história facilmente compreensível e menos misteriosa do que o anunciado. A única comparação possível com Donnie Darko é a forma eficaz como toca na nostalgia de época, com um tremendo revivalismo dos primórdios da década de 90 do século XX.


The Masque Of The Red Death (Roger Corman, 1964)

Entre a cinematografia lendária de dois gigantes do cinema, Roger Corman e Vincent Price, a série de filmes góticos adaptando contos de Edgar Allan Poe destaca-se. Neste, os talentos combinados destes monstros do cinema aliam-se ao olhar estético de Nicholas Roeg para uma adaptação barroca de um dos contos seminais de Poe. Price delicia-se claramente  no encarnar de um personagem fútil e implacável, que se compraz na corrupção moral dos que o acompanham, não descansando enquanto não recorre a todos os meios para destruir a inocência. Todo o filme é uma elegia à futilidade, mostrando que o dinheiro e o esplendor podem criar a ilusão de uma superioridade humana, facilmente aniquilada por imperativos biológicos. Nenhum luxo, ciência ou pacto demoníaco resiste ao poder da pestilência. O filme brilha num fortíssimo esplendor cromático, com um trabalho implacável de enquadramentos que tira partido do formato cinemascope para tornar quase paisagísticas as cenas de um filme de close ups e ambientes fechados. A sessão contou com a presença de Roger Corman, com visionamento prejudicado pelas condições da sala, pouco arejada e com um som demasiado estridente. Uma constante nas sessões do festival que decorreram no Tivoli.




78/52 (Alexandre Philippe, 2017)

Um documentário dedicado à sequência mais memorável do cinema de terror: a icónica cena do chuveiro no filme Psycho. O trabalho inquietante de Hitchcock é dissecado ao pormenor clínico, onde os aspecto técnicos são abordados mas o que realmente conta é a análise das influências e impactos desta cena de um filme. Neste aspecto, alguns depoimentos parecem sofrer da análise excessiva, procurando ver na cena e no filme muito mais do que o que realmente lá está. Para além do brilhantismo técnico de Hitchcock, ficou a sobressair o seu sentido muito negro de humor.




Santa Sangre(Alejandro Jodorowsky, 1989)

De Jodorowsky não esperamos banalidades. Santa Sangre é, nas suas palavras, uma tentativa de compreensão do que se passa no interior da mente de um assassino, bem como da impossibilidade de inexistência de redenção. A mente fragilizada de Fénix, traumatizado pela morte violenta dos pais e perda do seu amor precoce, transforma-o num assassino em série que, projectando a imagem mental da sua mãe desmembrada no seu inconsciente, o leva a matar qualquer mulher que lhe desperte o desejo sexual. Todo o filme é um exercício de psicadelismo, misturando o saber iniciático com uma visão arrepiante das tradições mexicanas sobre a vida e a morte. Santa Sangre é um crescendo contínuo de delírio, um filme que sempre que pensamos não poder ir mais longe, nos choca e surpreende.


Cult of Chucky (Don Mancini, 2017)

 Não vale a pena esperar muito da mais recente iteração sequencial das aventuras deste personagem diabólico. Agrada aos fãs de Chucky, como se notou pelo contentamento visível na sala e debandada quase generalizada após o final numa sessão dupla. Tem algumas mortes divertidas e apropriadamente sangrentas, muitas tiradas de humor negro dos bonecos assassinos, e uma história previsível com um twist final não muito inesperado. Um filme de terror pipoca, que dá continuidade a uma saga cinematográfica já de si pouco interessante.


Meatball Machine Kodoku (Yoshihiro Nishimura, 2017)

Não é o melhor filme que vi nesta edição do Motelx (essa distinção fica para Masque of the Red Death, Santa Sangre e o surpreendente Housewife), mas é sem dúvida o mais memorável. É difícil transmitir o quão awesomely louco é este delírio visual. A sinopse, sobre um homem não muito bem sucedido que aos cinquenta anos encontra o amor e se vê mergulhado numa luta contra cyborgs mutantes, não lhe faz justiça. Todo o filme é um delírio entre o body horror, gore e cyberpunk, com deformações insanas do corpo humano e algo que só pode ser descrito como torrentes imparáveis de sangue. Deliciosamente absurdo e divertido, em registo de exercício de estilo alucinante. Um tipo de filme só possível vindo da estranha cultura japonesa.


Animals (Greg Zglinski, 2017)

Filme na competição para o prémio Motelx, esta co-produção suíça, polaca e austríaca mergulha-nos na vida de um casal em desagregação. Ela é uma escritora a tentar criar o seu primeiro livro para um público adulto, ele é um chef cozinheiro que trai a mulher em todas as ocasiões, apesar de não ter deixado de a amar. Numa viagem de férias para uma casa isolada onde a escritora poderá escrever o seu livro, um acidente automóvel deixa-a inconsciente. O filme é notável pelo conceito, nunca nos deixando perceber qual é a sua realidade. Os acontecimentos narrados de forma não linear deixam-nos sempre na dúvida. Estaremos a ver alucinações, assombrações, delírios ou os sonhos sincopados do estado de coma. O seu visual também nos cativa. No entanto, o ritmo demasiado lento, cheio de tempos mortos, torna este filme muito soporífero.


Housewife (Can Evremol, 2017)

Começa como slasher, segue em ritmo de thriller psicológico, e termina em horror apocalíptico lovecraftiano. Este filme foi uma excelente surpresa, embora não esteja isento de problemas. Uma dona de casa, casada com um investigador do paranormal, tem no seu passado um fortíssimo trauma, causado pela morte violenta da irmã e dos pais num acesso de loucura da mãe. Um trauma que condiciona a sua maneira de viver, que será abalada pelo regresso de uma amiga há muito desaparecida, que a iniciará no culto de um guru espiritual. Este revela-se mais do que um mero charlatão, utilizando-a para trazer ao mundo um bebé ímpio, prenúncio de uma nova geração de seres malditos. É impossível não sorrir com o final do filme, profundamente lovecraftiano, com os requisitos monstros tentaculares, após momentos de parto anti-natural fortemente reminiscentes de The Brood, filme de David Cronenberg. Apesar de apostar no gore e terror psicológico, tem alguns momentos menos ritmados e um estranho defeito. Trata-se de um filme turco, com atores turcos, que pretende demasiado ser americano, mas aqueles sotaques não disfarçam.


Spot Motelx 2017 (Jerónimo Rocha, 2017)

A passar mais despercebido, embora tenha iniciado todas as sessões do festival. Foi a experiência visual mais incómoda, talvez verdadeiramente arrepiante, que retirei deste festival de cinema de terror. Os spots do Motelx são curtas metragens de direito próprio, e normalmente surpreendem pela qualidade. Têm estéticas cuidadas, focadas nas iconografias do género, e socorrem-se de adereços e efeitos visuais que pensamos serem inauditos no panorama nacional. Mas são, no fundo, experiências visuais confortáveis, por muito sangrentas ou viscerais que sejam as imagens. A barreira do ficcional nunca foi transposta. Exceto no spot deste ano. Ao invés de seguir a estética esperada do horror, com tripas e criaturas, optou pelo registo found footage e meteu-se com uma tradição totalmente nacional, a dos Diabos de Vinhais. Aqui revistos como um grupo violento que tortura e mata um casal nas matas. É forte, violento, arrepiante. E incómodo, quer na estética quer no tema, por mexer com o nosso imaginário e ser explícito na violência. Este ano não foram zombies, dons Sebastião vindos das brumas, ou naves aterrorizadas por criaturas. Foram os demónios do imaginário tradicional português, encarnados no que poderia perfeitamente ser um grupo de psicopatas matarruanos a assolar as matas do isolado interior profundo português.