quarta-feira, 19 de julho de 2017

As Nuvens de Hamburgo



Pedro Cipriano (2017). As Nuvens de Hamburgo. Lisboa: Flybooks.

Uma belíssima surpresa, este romance de Pedro Cipriano. Marta, uma jovem estudante que luta pela sua independência face a pais excessivamente protetores, decide-se por Hamburgo para estudar a área científica que mais a apaixona. O chegar à cidade ao abrigo de um programa Erasmus, preparando-se para iniciar as aulas do curso de História, tentar vencer barreiras linguísticas e culturais enquanto faz novas amizades com os colegas participantes no programa, são já de si fortes desafios. Mas enquanto descobre a cidade, Marta vê-se transportada a um outro tempo, sentindo na pele a tragédia do passado histórico recente da Alemanha. O que são aparentemente pequenas alucinações, com Marta a vislumbrar a cidade não de hoje mas dos tempos da II guerra, depressa se transforma em algo mais perigoso, invocando uma estranha relação com um criminoso de guerra que escapou impune aos tribunais da história.

É impossível dissociar neste livro o peso da história europeia contemporânea, e é o elemento que dá força. Caminhar pelas ruas de uma cidade europeia não se limita ao percecionar dos espaços urbanos. Para os conhecedores, há também uma sobreposição com os registos e a memória histórica. O presente próspero coexiste, na nossa mente, com os traumas do passado. É esse sentimento que Pedro Cipriano tão bem explora no registo fantástico. A Alemanha é a escolha lógica para um enredo deste género, embora suspeite que a escolha de cenário tenha algo a ver com as experiências pessoais do autor, pelo tremendo trauma nacional do nazismo e suas consequências extremas. Um peso que passou a fazer parte do caráter germânico.

As Nuvens de Hamburgo oscilam entre a banal história de libertação de uma jovem adulta e as feridas traumáticas da II guerra. Lê-se ao ritmo de um thriller, com o aprofundar das relações humanas entre personagens a ser pontuado por uma progressiva espiral descendente de mistério em viagem não intencional no tempo.

Um pormenor curioso neste livro é a editora que o publica. Pedro Cipriano é uma voz activa no meio editorial do fantástico português, tendo fundado a Editorial Divergência para publicar os novos autores que vão surgindo neste panorama reduzido, mas cheio de gente com vontade de fazer coisas. Recordo-me de o ter encontrado num Fórum Fantástico, a vender a sua primeira antologia de contos fantásticos, de lhe ler o entusiasmo nos olhos enquanto me explicava o seu projeto editorial. Confesso que não acreditei nele. A experiência tem-me ensinado que a maior parte dos jovens autores e editores que encontro em eventos e convenções é eventualmente levado pelo factor "life happens", que são muito raros os projetos e vozes promissoras que passam do primeiro conto ou romance. Todos os anos vejo o lançamento de novos projetos, sempre com aquele brilho nos olhos dos autores, e raramente lhes vejo continuidade. É sintomático do caráter residual das culturas de género em Portugal, insustentáveis do ponto de vista comercial. No entanto, alguns anos depois, continuo a ver Cipriano a editar, entre antologias que dão voz aos que querem publicar os seus contos, romances dos novos autores, e até consagrados mas malditos pelo consenso cultural normativo. Adoro quando me mostram que estou errado nas minhas perceções, e neste caso específico tenho uma parte substancial de uma estante a ser ocupado pela Divergência. Sublinhando a sua ética e postura como editor, este livro não é publicado pela sua editora. Um pormenor interessante mas que diz muito sobre este jovem cientista que já passou pelo CERN, é agora empreendedor na área da educação e que, apesar da sua aparência calma e algo franzina, é mestre numa arte marcial. Em suma, quer neste livro quer como editor, Cipriano kicks ass!